Sobre a coragem para ousar ser livre
Enquanto a cantora internacional diz que nasceu para ter coragem, o ícone nacional ensinou a ousadia de ser livre
Por: Marco Túlio Câmara
06/05/2025 • 13h50 • Atualizado
Palmas, 4 de maio de 2025, 20h30. 15 minutos antes da sessão começar e ainda não havia alcançado o número mínimo de espectadores para que o filme fosse exibido - cinco pessoas. No mesmo horário, um dia antes, na praia de Copacabana, um público estimado de 2 milhões de pessoas aguardavam o show histórico que começaria por volta 1h30.
Este texto poderia ser uma crítica à desvalorização da cultura nacional, é verdade, mas não é esse o objetivo. No horário marcado para iniciar o filme, o cinema já estava com um público até considerável e a sessão aconteceu normalmente, com risos, emoções e aplausos no final. Tal qual o show-espetáculo para uma multidão.
Gaga entoava sobre aceitação. Não a de outras pessoas, mas a própria. Em uma espécie de hino, milhões de pessoas bradavam que não há nada de errado em amar quem você é. O canto de libertação foi o afago de uma geração que conseguia se ver representada por meio da arte, ainda que internacional. De pessoas que dançavam escondidas no quarto, decorando as coreografias emblemáticas dos videoclipes que não saíam da parada de sucesso.
Naquela noite de sábado, essas pessoas se reconheciam, se abraçavam, batiam leque e se amavam. Não aos outros, mas a si mesmos. Em uma conexão mútua e compreensão de olhar, acolhiam-se no respeito para não mais se esconder, enquanto a cantora favorita incentivava que não era para se esconder no seu arrependimento, pois todos li nasceram para ter coragem.
Na sala de cinema, poucas dezenas de pessoas dedicaram o fim melancólico de um domingo chuvoso para ver a história de um Artista brasileiro na telona. Assim mesmo, com A maiúsculo. Do teatro, da emoção, da entrega, do choro contido, da coragem de enfrentar o pai, da intensidade de se viver da arte, da música que escolheu o seu caminho.

Foto: Divulgação
Ney Matogrosso olhava fundo nos olhos de cada espectador que assistia atônito toda aquela força entendida como revolta nos anos 60. Maior que o brilho no olhar e mais ousado que o figurino, o cantor que ali nascia e que a gente já conhece, ganhou outra roupagem. Da sensibilidade, das conversas difíceis, da repressão sofrida. Mas ele se manteve. Mas ele sobreviveu. Mas ele seguiu.
Parecia até que ele já previa os versos que pediam para não se esconder ou aquela carta musicada anos mais tarde sobre acordar com medo, mas sem chorar nem reclamar abrigo.
Porque, em todos esses anos, a arte o abrigava. Foi o teatro que o inspirava a ser quem quer que fosse, pois ali a liberdade não tinha limite. Foi a música que o libertou de ser afeminado, pois as notas não olham gênero. Foi a sedução que o permitiu viver os tantos amores que estavam guardados na cama do dormitório militar. Foi a confiança em ser quem se é que o levou para todas as salas de jantar de pessoas ocupadas em nascer. E morrer.
Mas não ele. Ele nasceu para brilhar, já dizia Caetano. Ele nasceu para amar o inventado, já dizia Cazuza. Ele nasceu para ser leve, pluma, nuvem azul, simples e suave coisa nenhuma, já dizia Ney.
E, aqui, cabem todas as conjugações de pessoas da língua. Porque se o que a vida quer da gente é coragem, como diria Rosa, sentimos que é preciso ter coragem para ousar ser livre. E voar.
Marco Túlio Câmara é jornalista, escreve quinzenalmente neste espaço. Também é professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da UFT. Doutor em Linguística Aplicada pela Unicamp, é autor de “Entrelinhas” e dos livros “Gestão de Conteúdo para Mídias Sociais” e “Planejamento Integrado de Comunicação”.