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Isso não é sobre o Felca

Isso não é sobre o Felca

Não adianta culpar Hytalo e enaltecer Felca se não refletirmos qual o nosso papel, enquanto pessoas que convivem com crianças, na manutenção de suas existências

Por: Marco Túlio Câmara

19/08/202519h00Atualizado

Na última semana, o debate público foi tomado por um vídeo viral que foge às regras do que normalmente se viraliza. Em longos minutos, o influenciador Felca desnuda esquemas de exploração infantil, sexualização, denúncias trabalhistas, entre outros absurdos que parecem ter saído dos maiores vilões de filmes e novelas. Além da repercussão na internet, terreno em que ele já tem espaço garantido e bons índices de visualização e alcance, o caso foi pra TV, pautou importantes sites, programas de entretenimento e o principal telejornal. Mais que isso, ocupou discussões políticas da Câmara, em todos os espectros partidários. 

Você que lê este texto já deve estar se lamentando “lá vem mais uma análise do vídeo ou mais um ataque ao acusado que está preso ou uma defesa inabalável do tema”. Se te tranquiliza, caro leitor, não é esse o objetivo deste artigo. Mas, sim, refletir sobre algo que pouco tem se falado no âmbito mais crítico e geral: cuidado da infância e regulação das redes sociais digitais.

Foto: Reprodução | Instagram

Foto: Reprodução | Instagram


Um dos primeiros debates levantados foi sobre a adultização das crianças, que passam a ser sexualizadas e exercer atividades remuneradas, como uma forma de ascensão social ancorada na desenvoltura delas frente às câmeras. Mas o que faltou nessas discussões é pontuar o a importância de se exercer a infância.

 Para além do direito básico de brincar e tudo o que assegura o Estatuto da Criança e do Adolescente, a infância é o momento em que construímos nossa base psíquica e de valores que nos acompanham para o resto da vida. Psicanálise à parte, é na infância que aprendemos o valor do perdão, do aconchego, do apoio, da liberdade, do não-julgamento, da autonomia. Quando Gonzaguinha entoava sobre “a pureza da resposta das crianças”, não entendo como um ode à santificação ou o que a Igreja prega da possível santidade infantil, mas sim a espontaneidade que elas carregam, ainda a tempo de não ter construído preconceitos e julgamentos. Onde foi parar essa liberdade? Como estamos tratando as nossas crianças hoje em dia? Ou melhor, como trataríamos a nossa criança de outrora?

Querer imputar ao seu filho o sofrimento que tivera no passado não o prepara para a vida, mas o traumatiza. Cobrar o amadurecimento além-idade não o faz ser prodígio, só o sobrecarrega. Incentivar um sem-número de atividades extras não é um laboratório da vida adulta, mas a negação do presente. É por isso que a espontaneidade e a liberdade se perderam. Ou a inocência, como preferir nominar. As crianças precisam de segurança, sim, pessoal e financeira, mas precisam de espaço e liberdade para serem quem são _ crianças.

E é nessa esteira que outro debate corre à margem: regulação das redes. Sem apequenar o tema e tratá-lo na paixão de torcida de futebol que, por vezes, se firma a política, a discussão não é sobre A ou B, mas como as crianças e adolescentes estão nesses espaços e como (ou se) eles contribuem para o desenvolvimento delas. Expor-se nas redes é se colocar à disposição para quaisquer posicionamentos e interações, sejam elas positivas ou não. Colocar-se disponível a um mundo de possibilidades é abrir a porta de casa e deixar qualquer um entrar e fazer o que bem entender com seu filho ou sua filha. Se a inocência já não existe, o que acontece quando ela se perde à vista de todo mundo?

Não adianta culpar Hytalo e enaltecer Felca se não refletirmos qual o nosso papel, enquanto pessoas que convivem com crianças, na manutenção de suas existências. Não adianta achar um absurdo meninas serem sexualizadas se promovo cada vez mais o distanciamento do meu filho ao matriculá-lo em inglês, luta, academia, reforço e mal mal ter um tempo de contá-lo uma estória. Porque, diferente dos contos de fadas de outrora, talvez o final não seja tão feliz assim.

Marco Túlio Câmara é jornalista, escreve quinzenalmente neste espaço. Também é professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da UFT. Doutor em Linguística Aplicada pela Unicamp, é autor de “Entrelinhas” e dos livros “Gestão de Conteúdo para Mídias Sociais” e “Planejamento Integrado de Comunicação”.

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