Ninguém sabia, ninguém viu; leia a crônica do jornalista Marco Túlio Câmara
Apuração daqui, fofoca dali, informação acolá. O fato foi se construindo na vista da população
Por: Marco Túlio Câmara
02/07/2025 • 08h28 • Atualizado
“Será que nosso Visconde de Girassol vai ser detido?”, perguntavam, aos montes, as centenas de pessoas que povoavam a praça central do condado. O fim de semana se aproximara, regado de comemorações para celebrar uma das temporadas mais esperadas do ano. Mas, enquanto de um lado estava tudo colorido, quente, com competições vibrantes e cavalarias a postos, do outro, uma nuvem cinza pairava sobre a região próxima do Largo do Helianto, cujas flores já não se voltavam ao astro rei. “Mas fiquei sabendo que é daquele caso do herdeiro da província”, afirmavam os que se consideravam mais informados e por dentro dos bastidores do largo central.
O discurso seguia o protocolo: da liberdade de investigação e convicção de que uma missiva entre amigos não seria lá grandes coisas para se ir para a prisão de primeira classe recém-inaugurada. Pombos-correio sobrevoavam o Largo mais do que de costume, precisou até uma organização do trânsito celeste. Entre os vários murmurinhos, só não se ouvia o nome do capitão da Província.
“Mas se é o herdeiro, não deveria ele, também, ser investigado? E aqueles carteados provincianos envolvendo o grupo de seresta? A carruagem não era ligada a eles? E todos aqueles encobrimentos da Guarda Real? Não seriam escândalos igualmente preocupantes?”, questionavam os mais afoitos, ora tentando ofuscar o que caía sobre o Visconde, ora enfrentando o silêncio que ali se instaurara por anos a fio, principalmente da imprensa.
Apuração daqui, fofoca dali, informação acolá. O fato foi se construindo na vista da população, que insistia em enxergar só de um lado da praça. Mas o Largo quadrado, por vezes tão grande, agora se espremia. Não somente dos entornos dos prédios lotados, mas na relação escondida que acontecia por debaixo dos panos.
O alto-falante tocava canções de distração, o ‘pão e circo’ estava diferente desta vez. “Ninguém sabia e ninguém viu que eu estava ao teu lado, então”. Antes mesmo de esbravejar que era fera, nesse momento, um silêncio sepulcral tomou conta dos presentes, se entreolhando e pensando: será que ninguém viu mesmo?.
O mesmo silêncio paira sobre os comparsas, quer dizer, aqueles que têm espaço na imprensa que conseguiram tal façanha a partir do rega-bofe provinciano. A velha tática de adiantar o faz-me-rir já não ia colar mais. Fingir que nem conhece também está fora de cogitação. Inventar uma nova atração e festa santa não daria tempo. Melhor falar que de herdeiro não tem nada e que toda essa relação próxima já é carta fora do baralho.
Por falar em baralho, os carteados seguiram firmes e fortes, mas chegou a hora de fingir que não. Melhor, né? Que imagem é essa que passaria no meio desse furacão... por falar em cão, os bichinhos fofinhos será que podem segurar a boa imagem?.
A música segue. “O mundo está ao contrário e ninguém reparou”. De novo, os súditos se entreolharam. Eles tinham reparado. Mas não tinham forças para esbravejar. Eles tinham reparado, mas não tinham onde se informar. Os cachorros grandes estão se atracando, enquanto o caramelo segue sob o sol catando as migalhas.
E assim, seguiu-se. Dispersos, foram embora um a um após cantarolar que o pra sempre acaba. Seja o coleguismo, a amizade, o laço familiar, a tal da ética, o compromisso do canudo. Afinal, não parece, mas não é mais outono. O inverno chegou para congelar as informações, o furo, o faro. Se as estações mudaram, é só reparar nos heliantos. Nada mudou?.
Marco Túlio Câmara é jornalista, escreve quinzenalmente neste espaço. Também é professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da UFT. Doutor em Linguística Aplicada pela Unicamp, é autor de “Entrelinhas” e dos livros “Gestão de Conteúdo para Mídias Sociais” e “Planejamento Integrado de Comunicação”.