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Um sonho dentro de um sonho; leia a crônica do jornalista Marco Túlio Câmara

Quando o inconsciente marca o encontro do adulto com o adolescente. O despertar se torna mais leve quando há o acolhimento

Por: Marco Túlio Câmara

01/04/202510h00

Essa noite eu sonhei que voltava pra minha cidade natal. Não em uma viagem normal, como a feita em abril do ano passado para o casamento da melhor amiga, cheia de nostalgia, lembranças, aconchego e amor. Era como se eu fosse apenas depositado ali, na versão atual, conflitando com quem aquele interior mineiro me forjou. 

Em uma mistura de cidades, com o frenesi da capital e a proximidade de cidade pequena, fui a bares e eventos culturais que agitavam a noite de sexta em uma programação completamente inventada (ahh a liberdade poética dos sonhos!). De lá, como bom inimigo do fim que sou, segui para uma possível roda de samba em uma praça cheia de memórias – próprias e construídas a partir de relatos, onde corri minha primeira infância e vivi as descobertas da adolescência, como o primeiro gole em bebida alcoólica, o truco matando aula e o beijo atrás da banca de jornal. 

Mas, dessa vez, fui adulto. Este que sou hoje, cheio de coragem e medo, confiança e lágrimas, luz e sombra_ não seríamos todos assim? Chegando lá, não havia samba, mas forró. Sorri ao vislumbrar casais idosos e LGBTs vivendo a liberdade e o chamego que o som da zabumba e do triângulo proporciona. Mas, dando uma volta, me deparei com aquilo que tentava fugir. 

Do outro lado da praça, avisto meus algozes. Eu, descalço, sentindo nos pés a poeira que só uma cidade siderúrgica pode proporcionar, me inundei de temores e avistava a sujeira que bucha vegetal nenhuma é capaz de tirar. Passeava receoso e tentando não ser visto, como quando vimos aquela pessoa indesejada na rua e mudamos de lado da calçada, para que aquelas ofensas e violências simbólicas de outrora não tomassem forma. 

Mas o que eu não entendia era que aquele que ali andava sem medo de sujar os pés não era mais o adolescente que não saíra da cidade do interior. Era o adulto que perdeu as contas de quantas casas morou, quantas cidades chamou de lar e quantos amores se prometeu vivenciar. Ali estava o “homem de aço”, não pelo trocadilho infame com o nome da região que nascera nem pela brutalidade de sentimentos, mas pela força que nem sabia que existia. 

E assim, aquele adulto encarou um a um e não falo aqui de briga adolescente. Mas se colocou de frente com o que o ajudou a chegar até aqui. Encarou quem o fez mal e riu aliviado por não se tornar um deles. Respirou orgulhoso de ter traçado um caminho que era só seu, permitindo-se sujar os pés, as mãos, a cabeça, mas com ela sempre erguida. Olhou pra trás e viu que todo aquele cenário não lhe pertencia mais, mas também era todo dele: a banca de jornal, a mesa de xadrez, a padaria preferida, o bar mais famoso do bairro e o churrasquinho mais gostoso da cidade. Se o cantor preferido entoa para sorrirmos de volta para a sorte, o adulto abraçou o adolescente que ali enxergou. E acolheu cada um desses sentimentos que lhe são tão caros até hoje: a coragem, a aflição, o orgulho, o medo. A coragem de ser quem se é. E continuar sendo. 

Marco Túlio Câmara é jornalista, escreve quinzenalmente neste espaço. Também é professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da UFT. Doutor em Linguística Aplicada pela Unicamp, é autor de “Entrelinhas” e dos livros “Gestão de Conteúdo para Mídias Sociais” e “Planejamento Integrado de Comunicação”.

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